“Tenho muito orgulho e prazer de estar aqui, hoje, à frente desse trabalho. Porque são poucos os que escapam de onde eu e muitos daqui passamos. Meu nome é Fernando Figueiredo. Sou um ex-presidiário.” É com franqueza que o fundador da Cooperativa Sonho de Liberdade, na árida e carente Cidade Estrutural (DF), dá as boas-vindas a um grupo de comunicadores de vários estados brasileiros em visita ao empreendimento social, durante o último dia do 9º Encontro de Jornalistas da Fundação Banco do Brasil, realizado em agosto, em Brasília.

O orgulho e o prazer do brasiliense Figueiredo, 43 anos, seis deles passados na prisão, justificam-se. Afinal, foi ali, na chácara outrora usada para atividades ligadas à criminalidade, que ele conseguiu, por meio do trabalho dignificante, escrever um novo começo de vida para si e para muitos outros ex-detentos do Sistema Penitenciário do Distrito Federal.
Na cooperativa que funciona colada ao maior lixão a céu aberto da América Latina, o “Lixão da Estrutural”, a apenas 15 quilômetros do centro da capital federal, Figueiredo e seus colegas cooperados dão exemplo de sustentabilidade e superação reciclando madeira, cimento, atitudes e sonhos.
Inclusão pelo trabalho
O ex-catador de lixo que entrou para o mundo do crime aos 13 anos conta à plateia de jornalistas que ao chegar à prisão, condenado por assalto e roubo de carro, não conseguia ver boas perspectivas. “Pensei: acabou. Vou ficar velho e, quando sair daqui, o que vai ser? Nunca imaginei o que está acontecendo hoje.”
A guinada na desesperançosa história começou quando ele se integrou ao projeto Pintando Liberdade, desenvolvido pelo Ministério dos Esportes, que ensinava aos internos da Papuda a confecção manual de bolas esportivas. Nas saídas quinzenais as quais tinha direito, Figueiredo vendia na rua, de porta em porta, parte do que era produzido.
Já com acesso ao regime de progressão de pena, ele criou um projeto de inclusão dirigido a egressos do sistema penitenciário, no intuito de apoiar essas pessoas que, a exemplo do que ele passou, costumam enfrentar dificuldades na reintegração aos mundos social e do trabalho, principalmente em razão do preconceito.
O grupo se instalou em 2005 na Estrutural, com o foco de trabalho ainda na produção artesanal de bolas e, em 2007, diante da dificuldade em concorrer com produtos chineses e coreanos, decidiu apostar em uma nova oportunidade de negócios que transitava bem em frente aos olhos. “Nós vimos os caminhões passando na nossa porta, indo despejar entulho de obra no Lixão, e percebemos que a madeira que ia para lá era muito rica”, diz Figueiredo.
Ele conta que pediu então aos motoristas dos caminhões que começassem a descarregar o material no terreno do grupo. “A partir daí, começamos a separar madeira e fazer piquete, estaca, madeira sob medida para a Construção Civil. Não paramos mais. Fomos desenvolvendo produtos e inovando.”
Em 2009, o grupo conseguiu formalizar a cooperativa, mas não sem antes enfrentar a recorrente barreira da discriminação. “Éramos um grupo de ex-presidiários, ninguém com o nome limpo que pudesse abrir um CNPJ. Todo mundo dizia que não queria se envolver ‘porque ia dar formação de quadrilha’”, lembra. “Juiz dizia que não ia dar certo, assistente social não queria dar carta de emprego, só Deus sabe o que nós passamos e o que nós enfrentamos até hoje por conta do preconceito”, diz o fundador do empreendimento, com a voz apertada pela emoção.
Foi o cunhado de Figueiredo, Geraldo Almeida, que acreditou no grupo e deu o aval que faltava. “Somos muito gratos a ele, porque foi quem nos emprestou o nome, quem teve a coragem de confiar, e continua nos ajudando”, afirma.
Projeto consolidado, eles têm hoje o apoio de algumas instituições parceiras, como a Fundação Banco do Brasil, que realizou investimento social de R$ 215 mil na cooperativa para a compra de equipamentos e ferramentas para a produção de móveis e na aquisição de um veículo utilitário para a coleta desses materiais.
Baixa reincidência
Das 100 pessoas que trabalham diretamente na Sonho de Liberdade – indiretamente são 500 envolvidas –, 30 ainda cumprem pena e 15 são ex-detentos. “Muita gente pede emprego aqui, mas nós priorizamos quem estava preso”, diz Figueiredo. O empreendimento social também emprega familiares dessas pessoas, assim como moradores da comunidade em situação de risco de exclusão.
A taxa de reincidência criminal entre os que passam pela cooperativa é pequena, em torno de 2 por cento, afirma Figueiredo. “A gente prega muito firme que o crime e a droga não compensam. A maioria já cansou de sofrer.”
Os cooperados reciclam 100 toneladas de madeira por dia, a maior parte resíduos da construção civil. “Poderia ser mais, porque muita madeira ainda passa batida para dentro do aterro”, ressalta o fundador da cooperativa.
De toda a madeira manipulada, a parte que eles não conseguem aproveitar em uma ampla gama de produtos artesanais e na confecção de móveis sustentáveis é vendida em forma de biomassa para ser usada como combustível em uma multinacional do ramo de alimentos. Além de madeira, a Cooperativa também recicla sobras de cimento usinado e com esse material produz meios-fios e bloquetes para piso.
Segundo Figueiredo, o lucro da cooperativa é de R$ 100 mil por mês. Já foi o dobro, na época da Copa do Mundo do Brasil, com as obras do Estádio Nacional, do VLT e no Aeroporto em andamento. Ele diz que todo o valor é dividido entre os cooperados, conforme a função e a produção de cada um. “Hoje não está sobrando nada para a cooperativa. Nosso maior lucro é ter as pessoas bem”. Ele se orgulha de a instituição, mesmo em ano de crise, não ter dispensado nenhum trabalhador.
De cabeça erguida
Na lista de desafios e de novos sonhos da Cooperativa, hoje presidida pela filha de Figueiredo, Rafaela, está a construção de uma creche e de um restaurante para os trabalhadores. “Hoje temos uma pequena lanchonete que não é suficiente para se fazer um alimento de qualidade para esse pessoal ter força para trabalhar. Aqui o serviço é pesado. Uma pedra de meio-fio pesa 100 quilos”. Ele diz que o empreendimento também precisa de mais máquinas e caminhões para coletar e transportar o material.
“Precisamos de financiamento, porque se gasta muito com esses equipamentos, e vejo que só quem tem acesso ao crédito são os empresários em quem o BNDES e o FCO [Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste] confiam. Nem todo mundo acredita em nós. A gente precisa é de um voto de confiança. Se sem ter dinheiro a gente está conseguindo tocar isto aqui, imagina se a gente tivesse?”, questiona.
Ele ressalta que a cooperativa também precisa de mais capacitação e de assistência aos familiares. “Queira ou não queira, a família desestrutura e sofre muita discriminação quando o seu ente querido está dentro do sistema penitenciário.”
Aos visitantes atentos à história de superação, Figueiredo finaliza dizendo da satisfação em ver seus colegas e amigos mudando de vida. “Meu maior troféu é ver esses homens voltando para as suas famílias. Dizendo ‘hoje eu sou um cidadão’, podendo entrar e sair de qualquer lugar de cabeça erguida.”
Andrés Gianni | ECO Brasília
Fonte: http://www.easycoop.com.br/Noticias/View.aspx?IDC=187985&ID=31257